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segunda-feira, 24 de outubro de 2011

ESTABILIZAÇÃO DE SERVIDORES TEMPORÁRIOS

No dia 21 de outubro de 2011, o Jornal A Crítica noticiou que o Tribunal de Contas do Estado do Amazonas (TCE-AM) deve decidir na próxima semana o recurso de professores temporário da Universidade do Estado do Amazonas (UEA) que pretendem ser efetivados em seus cargos por possuírem mais de cinco anos de serviços prestados à Universidade.

A pretensão dos professores temporários da UEA traz de volta o tema da estabilização de servidores sem concurso público, prática conhecida na linguagem jornalística como trem da alegria.

O artigo 37, inciso II, da Constituição Brasileira (CB), e o artigo 109, inciso II, da Constituição Amazonense (CA), estabelecem, como regra, que a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei.

As duas únicas exceções constitucionais à regra do concurso público são: 1) as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração (artigo 37, II, CB e artigo 109, II, CA) e 2) as contratações por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público (artigo 37, IX, CB e artigo 108, §1º, CA).

Com base nessas diferenças quanto à forma de ingresso no serviço público, ambas Constituições trataram de estabelecer diferenças quanto ao regime jurídico aplicável a cada tipo de servidor. Em razão da amplitude do tema, tratarei apenas do direito à estabilidade, por considerá-lo de fundamental importância para a compreensão e guardar estreita relação com o assunto tratado nesse post.

O artigo 41, caput, da Constituição Brasileira, e o artigo 112, caput, da Constituição Amazonense, dispõem que são estáveis após três anos de efetivo exercício os servidores nomeados para cargo de provimento efetivo em virtude de concurso público. Contudo, os três anos de efetivo exercício não bastam para aquisição da estabilidade. A estabilidade também está condicionada à avaliação especial de desempenho por comissão instituída para essa finalidade (artigo 41, §4º, CB e artigo 112, §4º, CA).

Aqui, cabe diferenciar os conceitos de efetividade e estabilidade, por ser costumeiro o emprego incorreto dessas duas expressões. Fala-se usualmente que ao adquirir estabilidade o servidor é efetivado. Entretanto, as expressões efetivado ou efetivação são empregados no sentido vulgar para indicar a permanência ou estabilização do servidor nos quadros da administração pública.

A efetividade é atributo do cargo e não do servidor que o ocupa e refere-se a sua forma de provimento dependente de concurso público. Ao mesmo tempo, é uma das condições para que o servidor adquira a estabilidade. Portanto, se um servidor ocupa um cargo efetivo, passa a ter efetividade. Se, por alguma razão, assume um cargo em comissão, deixa de tê-la.

A estabilidade é o direito de permanecer no serviço público assegurado ao servidor nomeado para cargo de provimento efetivo em virtude de concurso público que preencha os requisitos de: 1) três anos de efetivo exercício e 2) avaliação especial de desempenho por comissão instituída para esse finalidade.

Todavia, a Constituição Brasileira, no artigo 19 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), conferiu, excepcionalmente, estabilidade, aos servidores públicos civis da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, da administração direta, autárquica e das fundações públicas que não tenham sido admitidos por concurso público e estavam em exercício na data da promulgação da Constituição há pelo menos cinco anos continuados.

Importante destacar que o artigo 19 do ADCT conferiu apenas a estabilidade a esses servidores. A efetividade, por força da Constituição Brasileira, continua sendo exclusiva dos ocupantes de cargos efetivos aprovados em concurso público.

Esse tipo de estabilidade, por ser excepcional, não admite ampliações para contemplar hipóteses não previstas originariamente na Constituição, conforme decidiu o Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento da  ADI 289-CE e da ADI 125-SC.

Embora não fundamentem o seu pedido de estabilidade nesse dispositivo constitucional, o tratamento almejado pelos servidores temporário é, na verdade, exatamente o mesmo do artigo 19 do ADCT, isto é, alcançar a estabilidade sem passar pelo crivo do concurso público.

No caso dos servidores temporários, o pleito funda-se no abuso contumaz na renovação dos contratos temporários totalizando período superior a cinco anos e no princípio da segurança jurídica, que permite a convalidação pela administração pública, em casos excepcionais e para resguardar o interesse público, de atos considerados irregulares na sua origem. No Estado do Amazonas, há inclusive o precedente da Lei Estadual nº 2.624, de 22 de dezembro de 2000.

Embora a pretensão esteja fundada em valores da mais alta relevância, estes não autorizam a afronta ao artigo 37, II, da Constituição Brasileira, ao artigo 109, II, da Constituição Amazonense, e aos princípios da legalidade, igualdade, impessoalidade e moralidade, consubstanciando verdadeiro escapismo à exigência constitucional do concurso público.

Ademais, vale ressaltar que a ministra Carmén Lúcia, do STF, em obra doutrinária (ROCHA, Carmén Lúcia Antunes. Princípios Constitucionais dos Servidores Públicos. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 143), cunhou o princípio da acessibilidade aos cargos públicos.

Na ordem constitucional brasileira, esse princípio funda-se em alguns princípios fundamentais informadores da organização do Poder Público no Estado Democrático de Direito, tais como: a) princípio democrático de participação política, que impõe a participação plural e universal dos cidadãos na estrutura do Poder Público, na qualidade de servidores públicos; b) princípio republicano, que exige a participação efetiva do cidadão na gestão da coisa pública e c) princípio da igualdade, que impõe a igualdade de oportunidades no acesso ao serviço público.

Nesses termos, a acessibilidade aos cargos públicos constitui um direito fundamental expressivo da cidadania, a ser viabilizado por meio do concurso público. Assim, ao conferir estabilidade para servidores temporários, não se está apenas tornando ineficaz a exigência constitucional do concurso público, também se está tolhendo o exercício de uma prerrogativa fundamental da cidadania.

Com base nesses fundamentos, o direito à estabilidade vem sendo sistematicamente negado aos servidores temporários, tanto pelo STF quanto pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), conforme demonstram os precedentes já citados e também os seguintes: RE 316.879/SP, RMS 29.462/PA e AgRg no RMS 24.943/MG.

RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. FUNÇÃO PRECÁRIA NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. CONTRATO POR TEMPO DETERMINADO CELEBRADO SOB A ÉGIDE DA CONSTITUIÇÃO DE 1988. ART. 37, IX, DA CF/88. ESTABILIDADE EXCEPCIONAL. ART. 19, ADCT. NÃO APLICAÇÃO. INCIDÊNCIA DO REGIME GERAL DE PREVIDÊNCIA SOCIAL. ART. 40, § 13, CF/88. RECURSO DESPROVIDO.
I - As contratações por tempo determinado celebradas pela Administração quando já vigente a Constituição da República de 1988 têm caráter precário e submetem-se à regra do art. 37, IX, da Carta Política.
II - In casu, a recorrente celebrou contrato administrativo para a função de professora, por tempo determinado, em 02/06/93, solicitando, por outro lado, a dispensa expressa na função de agente administrativo, antes exercida.
III - Não é possível, diante da atual sistemática constitucional, estender a novos contratos temporários celebrados pelos administrados, a estabilização excepcional prevista no art. 19 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que se restringe a situações especiais, ocorridas antes da entrada em vigor da CF/88.
IV - O regime próprio de previdência é aplicável apenas aos servidores ocupantes de cargos efetivos. Ao servidor contratado por prazo determinado aplica-se o regime geral da previdência social, nos termos do art. 40, § 13, da Constituição .
Recurso ordinário desprovido.
(RMS 29462/PA, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 20/08/2009, DJe 14/09/2009)


ADMINISTRATIVO. SERVIDOR DESIGNADO A TÍTULO PRECÁRIO. DISPENSA.
LEGALIDADE. ESTABILIDADE NO SERVIÇO PÚBLICO. NÃO OCORRÊNCIA.
1. A dispensa ad nutum de servidor designado a título precário não importa em ilegalidade e independe de procedimento administrativo.
2. O fato de ter exercido precariamente o serviço público por muitos anos não confere ao servidor o direito à estabilidade, por ausência de previsão legal.
3. Agravo regimental não provido.
(AgRg no RMS 24943/MG, Rel. Ministro JORGE MUSSI, QUINTA TURMA, julgado em 16/12/2008, DJe 02/03/2009)


  

Thiago Rabelo Maia
Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Advogado e Analista Municipal de Direito da Prefeitura de Manaus

terça-feira, 17 de maio de 2011

APLICAÇÃO DA LEI COMPLEMENTAR Nº 135/2010 (LEI DA FICHA LIMPA) A FATOS ANTERIORES A SUA VIGÊNCIA

A questão da retroatividade da Lei Complementar nº 135/2010 atualmente é objeto das ações declaratórias de constitucionalidade nº 29 e 30, ambas sob a relatoria do ministro Luiz Fux.

Essas ações foram ajuizadas pelo Partido Popular Socialista (PPS) e pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB) e pretendem ver reconhecida a aplicabilidade da LC nº 135/2010 a fatos anteriores a sua edição, sem causar prejuízo ao princípio da irretroatividade das leis e da segurança jurídica.

Os argumentos apresentados são semelhantes aos utilizados pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para responder a Consulta nº 114.709/DF, relatada pelo ministro Arnaldo Versiani, na qual restou assentado que as novas causas de inelegibilidade trazidas pela LC nº 135/2010 produziriam seus efeitos mesmo em relação às condenações proferidas antes de sua publicação.

Contudo, após a decisão do Supremo Tribunal Federal pela inaplicabilidade da LC nº 135/2010 às Eleições de 2010, entendem os arguentes que remanesce a controvérsia sobre a possibilidade ou não de atribuir efeitos a fatos passados para tornar o cidadão inelegível.

A controvérsia judicial relevante reside na divergência de entendimento entre os diversos Tribunais Regionais a respeito da matéria, não obstante as manifestações do TSE em sede de consulta e no julgamento de casos concretos.

No julgamento do Recurso Ordinário nº 60.283/TO, o TSE considerou aplicável ao candidato Marcelo Miranda, condenado definitivamente em 12 de agosto de 2009 por abuso de poder político durante o exercício do mandato, as inelegibilidades previstas no artigo 1º, inciso I, alíneas d e h da Lei Complementar nº 64/90 com a redação dada pela LC nº 135/2010.

Ao responder a Consulta nº 114.709/DF, o TSE entendeu, por maioria, que a Lei da Ficha Limpa (LFL) se aplica aos processos em tramitação iniciados, ou mesmo já encerrados, antes de sua entrada em vigor, nos quais tenha sido imposta qualquer condenação a que se refere à nova lei.

Segundo o Tribunal, essa incidência não implica retroatividade da norma eleitoral, mas de aplicação aos pedidos de registro de candidatura futuros, posteriores à entrada em vigor, não havendo de se cogitar de qualquer agravamento, pois a causa de inelegibilidade incide sobre o candidato no momento do registro da candidatura.

Entretanto, o Tribunal Regional de Sergipe firmou posição no sentido de que a aplicação da LFL a fatos anteriores a sua vigência constitui ofensa aos princípios da irretroatividade da lei mais gravosa e da segurança jurídica.

A defesa da retroatividade parte da premissa de que o próprio artigo 14, §9º, da Constituição, determina que a lei complementar, ao estabelecer novas causas de inelegibilidade, deve observar a vida pregressa do candidato.

Portanto, as novas hipóteses de inelegibilidade criadas pela LC nº 135/2010 devem necessariamente considerar fatos passados.

Dessa forma, a interpretação que afasta a aplicação a fatos ocorridos a partir de sua entrada em vigor e desconsidera os acontecimentos anteriores restringe não somente a eficácia da LC nº 135/2010, mas do próprio dispositivo constitucional.

Por outro lado, a corrente minoritária do TSE, formada pelos ministros Marco Aurélio e Marcelo Ribeiro, e juristas como Thales Tácito Cerqueira, entendem que eventual interpretação retroativa dada à LC nº 135/2010 viola o princípio da segurança jurídica, além de ofender a garantia da coisa julgada e o devido processo legal.

As preocupações levantadas pela minoria refletem a preocupação com o precedente firmado pelo TSE no julgamento no julgamento do Recurso Ordinário nº 60.283/TO, interposto pelo então candidato Marcelo Miranda.

Ao considerar aplicável ao candidato, condenado definitivamente em 12 de agosto de 2009 por abuso de poder político, as inelegibilidades do artigo 1º, inciso I, alíneas d e h da Lei Complementar nº 64/90, com a redação dada pela Lei Complementar nº 135/2010, ou seja, com sanção de inelegibilidade de oito anos, o Tribunal desconsiderou que à época do trânsito em julgado da condenação, a sanção de inelegibilidade para o abuso de poder era limitada em três anos.

Tal entendimento vulnera os princípios da segurança jurídica, do devido processo legal, da irretroatividade das leis e a garantia da coisa julgada de tal forma, que Thales Tácito sustenta que essa interpretação faz surgir o chamado Direito Eleitoral do Inimigo, por negar o exercício da cidadania aos políticos, retirando-lhes várias garantias constitucionais.

Assim, como forma de salvaguardar esse conjunto de princípios e garantias constitucionais, todos considerados cláusulas pétreas, não haveria como aplicar a LFL aos feitos iniciados antes de sua entrada em vigor.

Essas são, em síntese, as principais teses jurídicas a serem apreciadas pelo STF no julgamento das ações declaratórias de constitucionalidade nº 29 e 30, que pretendem ver reconhecida a adequação constitucional da aplicação da LC nº 135/2010 a fatos anteriores a sua edição.



THIAGO RABELO MAIA
Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Amazonas - UFAM, Advogado e Analista Municipal de Direito da Prefeitura de Manaus

segunda-feira, 9 de maio de 2011

ENSINO RELIGIOSO NAS ESCOLAS PÚBLICAS E LAICIDADE ESTATAL

O artigo 210, §1º, da Constituição, estabelece que o ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental.

Assim, por expressa disposição constitucional, é permitido o ensino religioso nas escolas públicas de ensino fundamental.

Contudo, resta claro que o ensino religioso lecionado nas escolas públicas deve harmonizar-se com as demais normas constitucionais que asseguram a liberdade de crença e a separação entre Estado e Igreja.

Conforme anota José Afonso da Silva, a liberdade de crença compreende as liberdades de: a) escolha da religião; b) aderir a qualquer crença religiosa; c) mudar de religião; d) não aderir à religião alguma; e) descrença; f) ser ateu e g) exprimir o agnosticismo.

Por conta disso, ao regulamentar o artigo 210, §1º, da Constituição, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) dispôs, em seu artigo 33, caput, que o ensino religioso deverá assegurar o respeito à diversidade cultural e religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo.

A cláusula de separação entre Estado e Igreja, prevista no artigo 19, inciso I, da Constituição, veda aos entes federativos estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público.

Ao prever a separação entre Estado e Igreja, a Constituição optou claramente por um modelo laico de Estado.

Nesse modelo, as crenças religiosas não possuem qualquer ingerência nos assuntos político-administrativos do Estado e ao Estado é vedado interferir na organização e no funcionamento das religiões.

Laico é um Estado que não impõe nenhuma religião, mas que respeita a todas, mantendo-se imparcial diante de cada uma delas.

Essa imparcialidade não significa desconhecer o valor de uma confissão religiosa, mas de uma postura a ser assumida pelo Estado em respeito à liberdade de crença e consciência dos cidadãos, de modo a garantir o pluralismo religioso.

Segundo Leonardo Boff, a laicidade não se confunde com o laicismo. Este configura uma atitude que visa erradicar as religiões da sociedade para dar espaço apenas a valores seculares e racionais.

Esse comportamento é religioso ao avesso e desrespeita tanto as religiões quanto as pessoas religiosas e, portanto, se mostra completamente incompatível com o sistema constitucional brasileiro.

Tampouco pode ser confundido com a adoção de uma perspectiva ateísta. O ateísmo, na sua negativa da existência de Deus, é também uma posição religiosa, que não pode ser privilegiada pelo Estado em detrimento de qualquer outra crença.

Em síntese, a laicidade eleva todas as crenças religiosas a um mesmo patamar de respeito e consideração.

Com base nesses argumentos, a Procuradoria Geral da República (PGR) ajuizou ação direta de inconstitucionalidade (ADI nº 4439) perante o Supremo Tribunal Federal (STF), na qual pede seja dada interpretação conforme a Constituição ao artigo 33, caput e parágrafos 1º e 2º, da LDB, para deixar claro que o ensino religioso em escolas públicas só pode ser de natureza não-confessional, com proibição de admissão de professores na qualidade de representantes das confissões religiosas.

Nesse contexto, o ensino religioso ministrado nas escolas públicas não pode ter caráter confessional, haja vista a necessidade de uma atuação estatal imparcial em matéria religiosa.

Ademais, a disciplina deve ser tratada como história das religiões e lecionada por professores leigos recrutados pela via do concurso público.

Nessa perspectiva, o conteúdo da disciplina consistiria apenas na exposição de doutrinas, das práticas, da história e de dimensões sociais das diferentes religiões e também das posições não religiosas ou ateias.

Aqui, cabe pontuar a impossibilidade de um ensino de caráter ecumênico, pois ainda que não seja voltado à promoção de uma confissão específica, é baseado nos valores religiosos partilhados pela maioria, com prejuízo das visões ateístas, agnósticas, ou de religiões com menor poder na esfera sócio-política.

Ainda que a maioria da população partilhe de determinados valores religiosos comuns, isso não se mostra suficiente para tornar o modelo de ensino ecumênico uma medida democrática.

A democracia, conforme leciona Daniel Sarmento, não se confunde com o simples governo das maiorias, pressupondo antes o respeito a uma série de direitos fundamentais que atuam para proteger as minorias e assegurar a possibilidade de continuidade da empreitada democrática ao longo do tempo.

O formato de ensino religioso defendido pela PGR na ADI nº 4439 está disseminado por todo o Plano Nacional de Direitos Humanos (PNDH 3), especialmente na parte em que trata das ações programáticas relativas ao objetivo estratégico VI, no qual é preconizado o respeito às diferentes crenças, liberdade de culto e garantia da laicidade do Estado.

No item d desse objetivo, consta como ação programática, a cargo do Ministério da Educação e da Secretaria Especial dos Direitos Humanos, estabelecer o ensino da diversidade e história das religiões, inclusive as derivadas de matriz africana, na rede pública de ensino, com ênfase no reconhecimento das diferenças culturais, promoção da tolerância e na afirmação da laicidade do Estado.

Tal modelo de ensino religioso parece ser o único capaz de não implicar endosso a qualquer crença ou posição religiosa e, portanto, o único compatível com o modelo laico de Estado adotado pela Constituição.



THIAGO RABELO MAIA
Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Amazonas - UFAM, Advogado e Analista Municipal de Direito da Prefeitura de Manaus

segunda-feira, 2 de maio de 2011

PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E INELEGIBILIDADE ANTES DO TRÂNSITO EM JULGADO DA CONDENAÇÃO

Mesmo antes de sua entrada em vigor, a Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar nº 135/2010) já suscitava uma série de controvérsias.

Entre tais questionamentos destacam-se, por sua relevância, os seguintes: a) a LC nº 135/2010 é aplicável às Eleições de 2010?; b) as novas causas de inelegibilidade trazidas pela LC nº 135/2010 podem ser aplicadas retroativamente e atingir fatos anteriores a sua vigência? e c) as inelegibilidades decorrentes de condenações proferidas por órgãos colegiados passíveis de recurso violam a presunção de inocência?

A questão da aplicabilidade foi recentemente dirimida pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Recurso Extraordinário nº 633.703, no qual restou decidido, por maioria de 6 x 5, que a LC nº 135/2010 deveria respeitar o princípio da anualidade previsto no artigo 16 da Constituição e, portanto, não poderia ser aplicada às Eleições que ocorreram no ano de 2010.

A questão da retroatividade atualmente é objeto da Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 29, ajuizada pelo Partido Popular Socialista (PPS), que pretende ver reconhecida a aplicabilidade da LC nº 135/2010 para fatos anteriores a sua edição, sem causar prejuízo ao princípio da irretroatividade das leis e da segurança jurídica.

Todavia, a inelegibilidade oriunda de condenações passíveis de reforma não foi objeto de qualquer caso concreto julgado pelo STF após o advento da LC nº 135/2010.

As causas de inelegibilidade, por constituírem obstáculos ao direito de ser votado, estão intimamente relacionadas com a Democracia e a liberdade de escolha do eleitor, um dos pilares fundamentais desse regime.

Ademais, a amplitude conferida ao princípio da presunção de inocência, consagrado tanto na Constituição como nas Declarações Internacionais sobre Direitos Civis e Políticos, revela-se importante mecanismo de proteção dos direitos fundamentais dos cidadãos.

Contudo, a aplicação da presunção de inocência ao campo das inelegibilidades ainda é um tema que divide opiniões tanto nos tribunais quanto no meio acadêmico.

De um lado, perfilham-se os que consideram o princípio da presunção de inocência restrito ao Direito Penal e não caracterizam a inelegibilidade como uma forma de pena ou sanção jurídica.

Segundo esse ponto de vista, a declaração de inelegibilidade, por não constituir pena ou sanção jurídica, não atrairia a aplicação da presunção de inocência e prescindiria do trânsito em julgado da condenação que lhe deu origem.

Outro ponto bastante atacado é a amplitude dada à presunção de inocência no Brasil. Enquanto diversos países permitem o abrandamento dessa presunção após a primeira condenação, em nosso país isso só ocorre após esta se tornar definitiva.

Ressaltam que, em geral, a garantia da presunção de inocência assegura que somente por meio de um devido processo legal, em que seja demonstrada a culpabilidade do acusado, poderá o Estado aplicar-lhe sanção penal.

Após decisão de órgão judicial colegiado, no caso brasileiro, quase sempre em 2ª instância de julgamento, consideram razoável que a presunção seja atenuada, por não se tratar de prejulgamento ou antecipação de pena, mas de extração de conseqüências jurídicas da inversão do ônus da prova.

Tal restrição estaria amparada no artigo 14, §9º, da Constituição, ao permitir a criação por lei complementar de novas causas de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa e a moralidade para exercício de mandato considerada a vida pregressa do candidato.

No âmbito do Direito Internacional, o Pacto de São José da Costa Rica estatui no artigo 23.2 que a lei pode regular o exercício dos direitos e oportunidades, apenas por motivo de idade, nacionalidade, residência, idioma, instrução, capacidade civil ou mental, ou condenação, por juiz competente, em processo penal.

Dessa forma, conforme o Pacto de São José da Costa Rica, a condenação pendente de trânsito em julgado também poderia ser utilizada para restringir a elegibilidade do cidadão.

Por outro lado, há opiniões no sentido da aplicação da presunção de inocência aos demais ramos do Direito, inclusive em matéria político-eleitoral. Assim, decretar inelegibilidade a partir de condenação não definitiva ofenderia esse princípio e, por conseguinte, a Constituição.

Os principais argumentos nesse sentido são extraídos do voto proferido pelo ministro Celso de Mello no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 144, cuja ementa consignou a impossibilidade constitucional de definir como causa de inelegibilidade a existência de procedimentos judiciais pendentes de trânsito em julgado, a eficácia irradiante da presunção de inocência e a possibilidade de sua extensão ao processo eleitoral.

A suposta adequação da inelegibilidade oriunda de condenações passíveis de reforma ao comando do artigo 14, §9º, da Constituição, foi igualmente afastada ao fixar-se a impossibilidade de lei complementar, mesmo com apoio no §9º do artigo 14 da Constituição, transgredir a presunção constitucional de inocência.

Outrossim, em matéria de privação de direitos políticos, a própria Constituição já estabelece que, nos casos de condenação criminal (artigo 15, inciso III) e por improbidade administrativa (artigo 15, inciso V), a restrição somente poderá efetivar-se após o trânsito em julgado.

Tais argumentos foram reafirmados pelo ministro Celso de Mello ao deferir a medida cautelar prevista no artigo 26-C da LC nº 135/2010 ao deputado federal Natan Donadon (PMDB/RO).

Essas são, em síntese, as principais teses jurídicas a serem apreciadas pelo STF quando for analisar a constitucionalidade dos dispositivos da LC nº 135/2010 que estabelecem como causas de inelegibilidade as condenações proferidas por órgão judicial colegiado antes de transitarem em julgado.



THIAGO RABELO MAIA
Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Amazonas - UFAM, Advogado e Analista Municipal de Direito da Prefeitura de Manaus